República de dependentes
CLÁUDIA COLLUCCI
DE SÃO PAULO
Novo modelo de reabilitação para viciados em drogas e álcool usa rotina em comunidade como ponte entre a desintoxicação e a vida livre da dependência
Juca Varella/Folhapress
Ex-dependentes químicos dividem casa na Vila Clementino, zona sul de São Paulo
São Paulo está adotando um modelo inédito de reabilitação da dependência química: a criação de repúblicas para usuários de drogas que passaram por processos de desintoxicação. Uma casa-piloto, com oito jovens, funciona há nove meses na Vila Clementino, zona sul.
Outras cinco repúblicas semelhantes, voltadas para o tratamento de moradores de rua, devem ser abertas a partir de março pela prefeitura.
Os projetos são coordenados pela Uniad (Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas) da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).
Na casa, a rotina é parecida com a de uma república de estudantes. Os jovens, com idade média de 25 anos, fazem a comida, lavam a roupa, arrumam a casa. Cada um tem uma cópia da chave e entra e sai a hora que desejar.
A abstinência tem que ser total (nem cerveja pode). Não há ninguém fiscalizando, mas testes antidrogas e bafômetros são usados para checar se eles estão "limpos".
Nos últimos meses, três jovens tiveram que sair da casa porque sofreram recaídas, segundo o orientador da república, Marcos Vieira, 41.
Espécie de conselheiro dos jovens, Vieira já foi usuário de drogas, abandonou o vício e hoje trabalha como terapeuta especializado em dependência química. É ele que aplica os testes na casa.
O jovens são obrigados a manter o tratamento para a dependência (com remédios, psicoterapia e grupos de ajuda mútua) fora da casa e a retomar estudos ou trabalho.
Sete dos oito moradores estudam ou trabalham. O tempo de abstinência vai de três meses a um ano.
Como contrapartida, o projeto oferece o imóvel e o pagamento de despesas da casa, por meio de patrocínio.
Os jovens bancam comida e despesas pessoais.
Inspirado nas "sober houses" americanas (casas da sobriedade, em tradução literal), o projeto busca resolver um dilema no tratamento da dependência: o que fazer após a desintoxicação?
RECUPERAÇÃO
Há uma certa unanimidade entre os médicos de que só a internação não basta.
"Ela é boa para estabilizar a pessoa. O desafio é como ajudá-la a retomar os laços familiares, o estudo, o trabalho. As casas de transição podem ser uma boa opção", diz o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, coordenador da Uniad e do projeto das repúblicas.
Na literatura médica, estudos mostram que a permanência nas "sober houses"- em conjunto com outras terapias- aumenta as chances de recuperação.
As pesquisas também mostram que elas são viáveis financeiramente se forem autossustentáveis-os pacientes tocam os serviços da casa e pagam suas despesas.
Para o psicólogo Jason Leonard, que estuda há 15 anos esses modelos e é autor do livro "Vidas Resgatadas", ter rotina e estrutura longe do ambiente que propicia o uso de drogas é fundamental para a recuperação.
"Com a abstinência, o apoio e a comunhão entre pessoas que estão no mesmo barco, é provável que você tenha um resultado muito bom", disse ele à Folha.
A psicóloga Ilana Pinsky, vice-presidente da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas, afirma que a iniciativa torna os jovens adictos mais independentes. "Ao viver em comunidade, eles precisam ter responsabilidade e, ao fazer as coisas por conta própria, descobrem que são capazes."
"Cheirei uma casa lotérica"
DE SÃO PAULO
O carioca Gilberto, 28, passou por 14 internações nos últimos cinco anos sem conseguir se livrar do vício da cocaína. O paranaense Bruno, 23, usou crack, e chegou a furtar para sustentar o vício.
O paulista Ramon, 32, viveu nas ruas depois de perder todos os bens e se afastar da família. "Cheirei uma casa lotérica", diz ele. Músico, "cheirou" também o violino.
Dividindo hoje a mesma república, na Vila Clementino, zona sul de São Paulo, os jovens tentam retomar projetos de vida interrompidos pelas drogas.
"Comecei a usar álcool e maconha aos 15 anos. Aos 17, já tinha incorporado o ecstasy e outros ácidos. Aos 21, experimentei cocaína", conta o estudante Gilberto.
Quando a família descobriu o vício, começaram as sucessivas internações. Após a última delas, ele foi passou a morar na república. Retomou os esportes e a faculdade de administração- que ele deve concluir em junho.
"Aos poucos estou me estruturando. Voltei a praticar esportes. Estou acertando as partes quebradas da minha vida", afirma.
Bruno conheceu maconha em casa, aos 14 anos. Seu pai era usuário. Logo depois, passou a usar cocaína e, por último, crack. Na vizinhança, amigos também usavam e traficavam drogas. "Eu mesmo já ajudei de vender."
Após viver cinco anos em Londres, sem deixar o vício, ele voltou para o Brasil. O pai e a mãe já estavam mortos. Ele, vítima de infarto. Ela, durante uma lipoaspiração.
Bruno viveu com a madrasta e, depois, com a tia. Mas ambas o expulsaram de casa. À época, ele também furtava. Hoje, trabalha como maquiador. (CC)
Prefeitura vai adotar modelo de tratamento
DE SÃO PAULO
O modelo de repúblicas para dependentes químicos será usado pela Prefeitura de São Paulo no tratamento de moradores de rua. A capital tem 13,8 mil pessoas vivendo na ruas, sendo que 75% são usuários de álcool e drogas.
A iniciativa faz parte de pacote de ações para o enfrentamento às drogas, especialmente o crack. Na primeira etapa, foram criadas 300 vagas de internação para desintoxicação.
"As pessoas pensam que só internar basta. Mas não é a solução. O grande problema é o "day after'", explica o médico Luiz Alberto Chaves de Oliveira, coordenador municipal de atenção às drogas.
Segundo ele, além do aluguel de cinco casas, que serão chamadas de moradias assistidas, a prefeitura deve contratar profissionais que funcionarão como tutores dos moradores. Cada um cuidará de um grupo de dez pessoas.
"Sei que é um número pequeno. Mas é melhor começar com cinco, mostrar a validade e depois crescer em escala", diz ele
Com um custo estimado em R$ 25 mil mensais, cada casa abrigará 12 moradores. As despesas serão cobertas pelo município.
Diferentemente da república da zona sul, as casas assistidas terão agentes administrativos permanentemente no local.
"Vamos tratar casos graves, dependentes químicos em situação de rua que precisam de um processo de ressocialização muito forte, além do tratamento contra as drogas."
As casas funcionarão perto dos Caps (ambulatórios que atendem dependentes químicos) e contarão com a ajuda de grupos como o Alcoólicos Anônimos (CC).